O que os espíritas precisam saber XVII
Onde o materialismo para, o espiritualismo contínua
O estabelecimento de uma ciência do homem espiritualista na França não ocorreu subitamente, do nada. O conhecimento científico parte sempre de uma tradição, progressivamente evoluindo em seus conceitos. Mas, quando a comunidade científica encontra imperfeições na teoria aceita, ocasionalmente ocorre uma mudança de paradigma, a adoção de uma teoria mais completa que a anterior, que vai mais longe na explicação dos fenômenos que são seus objetos de estudo.
Foi exatamente por um processo de mudança de paradigma que a ciência do homem após a Revolução Francesa evoluiu de um corpo que pensa porque sente, para uma alma que pensa usando o corpo como seu instrumento.
A reação espiritualista teve início quando a teoria dos ideólogos foi corrigida e ampliada com a revolução científica proposta pelo filósofo e moralista francês Marie-François-Pierre Gonthier de Biran, mais conhecido como Maine de Biran (1766-1824), causando um despertar do sono materialista e avançando experimentalmente no estudo da psicologia humana quanto à produção do conhecimento e aos fundamentos da moral. No início de suas pesquisas, Biran foi desafiado pelo próprio Instituto da França, vencendo diversos concursos nele propostos, como o que perguntava, em 1802:”Qual a influência do hábito sobre a capacidade de pensar?”.
O materialismo é uma hipótese que nega os pressupostos espiritualistas. Mas, o contrário não é verdadeiro. Quanto ao ser humano, a ciência materialista estuda seus órgãos, funções, tecidos, sistemas, os sentidos físicos e tudo o mais. O espiritualismo parte desse conhecimento estabelecido e avança nos fatos do espírito humano. Kardec desenvolveu essa ideia:
Deixemos, pois, o materialismo estudar as propriedades da matéria; este estudo é indispensável, e o será tanto de fato: o espiritualismo não terá mais do que completar o trabalho naquilo que lhe concerne. Aceitemos as suas descobertas, e não nos inquietemos com suas conclusões absolutas, porque sua insuficiência, para tudo resolver, estando demonstrada, as necessidades de uma lógica rigorosa conduzirão forçosamente à espiritualidade. (KARDEC, [RE] 1868, p. 134)
Maine de Biran, longe de rejeitar a Ideologia como um todo, partiu do entendimento conquistado por essa ciência para a compreensão do ser humano, identificando as limitações e os erros cometidos por seus criadores para fazê-la avançar. E, na busca de uma solução que explicasse melhor os fatos, ampliou o campo de investigação, porque em seu pensamento não negava a existência da alma, mesmo reconhecendo e respeitando que sua essência era inacessível aos sentidos. Sabia, porém, que podia estudá-la somente observando seus efeitos. Foi mais longe que os ideólogos, pois, enquanto eles se detinham nos limites da matéria tangível, o pensamento espiritualista alcançou a abrangência necessária para explicar satisfatoriamente os fenômenos psicológicos envolvidos.
Havia um objeto bem definido em sua pesquisa. Maine de Biran recebeu do século das luzes a ideia da moral natural, deixando de ser um assunto restrito da religião para tornar-se conquista superior da ciência, pela compreensão da natureza humana. Ele atendeu assim as exigências dos novos tempos, ao abandonar o dogmatismo e o sobrenatural anteriormente aceitos pelas regras científicas, como também seus termos, métodos e fundamentos.
Até então, os materialistas do Instituto reduziam em sua teoria o mecanismo psicológico para relacionar a personalidade humana a um processo passivo. Segundo eles, tanto as faculdades, o juízo, quanto a reflexão, desejos e paixões seriam apenas transformações da própria sensação. Tudo no homem se resumiria ao sentir. As únicas forças que provocariam o movimento do indivíduo seriam a dor que detém e prazer que motiva. Repetindo as experiências, fugindo do sofrimento e buscando a satisfação na relação com o ambiente e os objetos que encontra, o ser estabeleceria os hábitos formadores de sua estrutura psicológica, como a facilidade de pensar, a memória e todos os demais. Seria o homem, assim considerado, nada além de uma máquina fisiológica de pensar.
Vendo o homem como um animal que pensa, o exclusivismo da razão como o único meio para estabelecer um indivíduo social, o materialista consagra como impulso da ação o prazer, o limite na dor. Abandona a consciência moral que fundamenta valores transcendentes da fisiologia, pois nada vê senão carne e osso. Esta ainda hoje é a chaga da humanidade. Sondando as profundezas da alma, Biran vai não só fundar uma psicologia científica, como dar base adequadas para uma vida humana que valha a pena, pois não é possível “tantos homens dissipados e empedernidos ir na carreira das paixões e dos divertimentos do mundo até sufocar esta verdade interior que o chama continuamente à ordem, ao dever, à razão e a reflexão”. Nada mais atual! E ele conclui afirmando ser “necessário conciliar o coração com as luzes, a consciência com os costumes, os deveres com os prazeres e, por aí, chegar à paz do coração, a esta paz interior, sem a qual não há felicidade possível” (BIRAN, 1927, p. 215).
Maine de Biran reconhece na fisiologia os instrumentos da sensibilidade, mas, vendo o ser humano como alma e corpo, reconhece as faculdades como inerentes à alma, promovendo por seu esforço o desenvolvimento das suas capacidades e habilidades. De um ser passivo, faz do homem um ser duplo, ativo e livre; responsável por suas escolhas racionais, tornando essa definição a base da psicologia e da moral experimentais. Mas, é importante frisar, ele não partiu primeiro dessa conclusão para chegar à sua teoria, como vamos ver, mas observou e estudou os fenômenos e, desses fatos, extraiu as hipóteses que a sustentam.
Assim, Biran estabelece duas metas para ciência do homem — unir psicologia e fisiologia em sua pesquisa e compreender o fenômeno simples ou fato primitivo único da atividade do espírito, respeitando assim as exigências racionais da época.
Essa revolução psicológica criada por Maine de Biran foi inédita. Até então, a palavra alma estava unicamente associada a metafísica e religião, sendo uma abstração criada por Deus, hipotética ou dogmática. Mas ele alterou o caminho e observou por meio de fatos como causa da natureza humana, tirando-a das intangibilidades celestes para a vida, do campo religioso para o científico. Conceitos e modelos criados por ele, como a ideia de inconsciente, vão direcionar essa disciplina nos séculos seguintes.
A psicologia de Biran foi precursora, criando uma base conceitual essencial para o surgimento do Espiritismo, porquanto elevou o debate da alma para o nível científico, único ambiente no qual a Doutrina Espírita poderia se estabelecer. Kardec inseriu a Ciência Espírita entre os estudos psicológicos espiritualistas de seu tempo. Por isso, reafirmamos, para compreender o Espiritismo em seu sentido original, é preciso antes conhecer o cenário cultural de seu surgimento. E foi para a psicologia espiritualista do começo do século 19 que todas as ideias elaboradas nos séculos anteriores convergiram para uma só síntese.
Atualmente, porém, essa origem das ideia espíritas é grandemente desconhecida. A visão mais comum está em tentar definir o Espiritismo pelo estado de coisas de nosso tempo, tirando-o de seu contexto original. O engano está em imaginar Allan Kardec desenvolvendo os conceitos fundamentais tomando como base uma alma abstrata da filosofia ou definida pelos devaneios da teologia. Nada mais fora da realidade. O passo de superação dessas limitações, alterando o foco de abordagem da alma para a metodologia científica, já havia ocorrido na primeira metade do século. Kardec não foi pioneiro da definição do ser humano como sendo “uma alma encarnada”, isto foi obra de Maine de Biran, ao fundamentar cientificamente os fenômenos psicológicos. Mas coube ao professor Rivail desvendar ao mundo as consequências morais de se reconhecer o Espírito como sendo a “alma desencarnada”, por meio da observação dos fenômenos espíritas. Ambos se estabeleceram como conhecimento científico.
A filosofia tradicional lida somente com hipóteses, as religiões estabelecem dogmas, Kardec reforça enfaticamente que o Espiritismo parte de fatos ou fenômenos produzindo conhecimento científico. Por isso é equivocado derivar a Ciência Espírita diretamente de outras formas de conhecimento, como os sistemas filosóficos clássicos ou a trilogia milenar, como se tem imaginado nos estudos do Espiritismo desde o século 19 até hoje. A partir desse equívoco, ocorreu algo ainda mais nefasto, pois essa visão acabou por adulterar a prática espírita no Brasil, congelando seus propósitos transformadores, pois, ao adotar as obras de Kardec como revelação metafísica extraordinária, independente de uma tradição do pensamento científico, gerações de adeptos o transformaram numa fonte de culto, conformando um movimento espírita teológico, erigido numa seita exclusivista, desvio que vamos estudar no Livro Terceiro desta obra.
Em verdade, o campo da psicologia experimental e dos fatos psicológicos foi o ponto inicial, do qual a Teoria Espírita é o seu desenvolvimento como explicou Kardec:
O Espiritismo não tomou seu ponto de partida na existência dos Espíritos e do mundo invisível, a título de suposição gratuita, salvo a provar mais tarde essa existência, mas na observação dos fatos, e de fatos constatados, ele conduziu a teoria. Esta observação o conduziu a reconhecer, não somente a existência da alma como ser principal, uma vez que nele residem a inteligência e as sensações [mas não a sensibilidade que pertence à fisiologia orgânica], e que sobrevive ao corpo, mas quantos fenômenos de uma ordem particular se passam na esfera de atividades da alma, encarnada ou desencarnada, fora da percepção dos sentidos. Como a ação da alma se liga essencialmente à do organismo durante a vida, o Espiritismo é um campo de exploração vasto e novo aberto à psicologia e à fisiologia, e no qual a ciência encontrará o que procura inutilmente há muito tempo. (KARDEC, [RE] 1866, p. 159)
Por ter profundo conhecimento da ciência psicológica, estudada por décadas antes de se deparar com os fenômenos espíritas, Kardec tinha à sua disposição os termos e a definição dos fatos psicológicos apropriados para estender o estudo então vigente da alma para o alma liberta do corpo, ou espírito. Conseguiu, então, compreender a profundidade do ensino dos Espíritos superiores.
Referência:
1- Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo / Paulo Henrique de Figueiredo – São Paulo(SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.
