O que os espíritas precisam saber XVIII

8 de Dezembro de 2025 Não Por Sergio França Martins

Apresentação
O lançamento desta inédita tradução da 1ª edição original de O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo pela editora FEAL (Fundação Espírita André Luiz) é uma importante contribuição para o processo de restabelecimento do Espiritismo e de sua proposta original resultante do avanço historiográfico que atualmente vivenciamos. Foi nessa obra que Allan Kardec apresentou a elaboração final da teoria moral espírita. Essa doutrina está demonstrada em forma de tese em sua primeira parte, resumida no capítulo VIII, sendo validada pelos exemplos da segunda parte.
Em O Céu e o Inferno, Allan Kardec apresenta as diferenças entre a metafísica do Velho Mundo, que era dogmática, a metafísica elaborada por filósofos e pensadores e, por fim, a metafísica experimental do Espiritismo, quando as leis gerais da moral são deduzidas dos milhares de comunicações dos espíritos nas mais diversas fases evolutivas. Em seguida, apresenta sua moral da liberdade, moral da autonomia, lei universal do mundo espiritual.
Pouco após o lançamento do livro, Kardec realizou um trabalho mediúnico privativo, no dia 8 de outubro de 1865, quando registrou as falas do sonâmbulo lúcido Sr. Morin, que serviu de instrumento para a a comunicação:
Pergunta: – Vejamos, agora que já passou algum tempo desde a publicação do meu último livro, O Céu e o Inferno, conte-me um pouco qual impressão foi produzida no público?
Resposta – Do número total de vendas, há bem um terço e ainda mais nas mãos dos jesuítas. Não se sabe por onde atacá-lo; eles estão muito confusos. São pegos e chicoteados com seu próprio chicote. [Eles pensam:] “É apenas o texto do nosso ensino [que Kardec cita], não podemos dizer nada”. Com a pena à mão, atacam a segunda parte da obra [Exemplos], mas, quando se trata de falar da primeira [Doutrina], dizem: impossível! É muito difícil refutá-la; é tão difícil que roem as unhas e as dos jesuítas estão tão mordidas que, de tigres, transformaram-se em gatinhos acuados. Há um grande sentimento de medo manifestado pelo silêncio geral. Eles temem, mas não saberiam renunciar a um domínio que é a sua ruína, a todas essas reverências dadas a todos esses [que se consideram] reverendos, a seu orgulho e suas riquezas. E, no entanto, fazem concessões duras e, ainda sem ver todo perigo, pressentem a catástrofe. Cada uma das sua palavras, [Kardec], cada um dos escritos que saem da sua pena são firmes demais e expressam uma convicção profunda demais para se supor! [O que fizeram os jesuítas?] Apenas eles o examinaram bem, o estudaram profundamente, introduziram pessoas próximas a você que os informaram sobre tudo. ( Extrato de manuscrito pertencente a Allan Kardec, CDOR Kempf n. 1865_10_08)
Documentos  e fatos das adulterações
Em 2017, com o lançamento de El legado de Allan Kardec, a diplomata brasileira Simoni Privato demonstrou documentalmente, após exaustivas pesquisas e confirmando antiga denúncia de Henri Sausse, que a obra A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo, de autoria de Allan Kardec, foi adulterada¹ em sua quinta edição. Isso ocorreu devido ao fato de que esta versão, com novo conteúdo, teve seu depósito legal realizado em 23/12/1872², mais de três anos após a desencarnação do professor Rivail, em 31/03/1869.
De acordo com o Direito Autoral no mundo inteiro³ e desde a época de Kardec, apenas o autor tem o direito de modificar sua própria obra, razão pela qual o novo conteúdo, surgido e depositado após sua morte, é considerado apócrifo e deve ser descartado. Em vista disso, diversas instituições espíritas internacionais abandonaram a edição falseada de A Gênese e passaram a adotar a edição original.
No Brasil, coube à FEAL a tarefa de lançar a edição restaurada  da obra, o que ocorreu no histórico dia 26 de maio de 20184, quando, ao mesmo tempo, foi anunciada a abertura do acervo do historiador espírita Canuto Abreu (1892-1980) contendo centenas de manuscritos originais e inéditos de Allan Kardec, que foram confiados ao Centro de Documentação e Obras Raras (CDOR) da FEAL e aos poucos estão sendo divulgados no portal do Projeto Allan Kardec, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Paralelamente, realizaram-se outros esforços para a recuperação histórica em torno do Espiritismo. Em 2016, havia sido lançada a obra Revolução Espírita: a teoria esquecida de Allan Kardec, de autoria de Paulo Henrique de Figueiredo, revelando o contexto cultural do surgimento do Espiritismo, quando o conhecimento científico oficial na França e em vários países era espiritualista racional, tratando o ser humano enquanto alma encarnada, por meio da psicologia experimental, sem misticismos ou dogmas. O estabelecimento das ciências filosóficas na universidade e em todo o sistema de ensino francês criou condições extremamente favoráveis para o surgimento do Espiritismo. Foi a reação espiritualista. Essa obra também apresenta a tese segundo a qual a teoria moral espírita original era a da autonomia, tema de enormes repercussões doutrinárias e sociais que foi aprofundado em 2019 no livro Autonomia: a história jamais contada do Espiritismo, do mesmo autor.
Tendo surgido a suspeita de adulteração da obra O Céu e o Inferno ou a justiça divina segundo o Espiritismo, tomamos a iniciativa de realizar pesquisa in loco, o que foi feito por Lucas Sampaio, na cidade de Paris, durante o mês de setembro de 2019, após obter orientações de Simoni Privato, que havia feito a pesquisa anterior e desta vez não poderia viajar. Nos Arquivos Nacionais da França, após longa pesquisa sobre os livros de declarações de impressor e de depósitos legais, ficou provado que a 4ª edição de O Céu e o Inferno, contendo profundas alterações doutrinárias, teve sua impressão solicitada em 09/07/18695 e seu depósito legal realizado em 19/07/18696, quase quatro meses após a desencarnação do professor Rivail, o que configurava evidente adulteração.
Felizmente, apenas as duas obras finais, O Céu e o Inferno e A Gênese, foram adulteradas, e o conteúdo correto e original é o de suas primeiras edições. Todas as outras obras da Codificação, O Livro dos Espíritos, O que é o Espiritismo, O livro dos Médiuns e O Evangelho segundo o Espiritismo, estão absolutamente intactas em suas edições francesas, conforme atestaram os registros oficiais e a comparação dos textos.
O plano de Allan Kardec e o golpe no Espiritismo
Manuscritos inéditos digitalizados em Paris demonstram também que as adulterações nas obras derradeiras somente foram possíveis por conta de um golpe praticado contra o Espiritismo e Amélie Boudet (Madame Allan Kardec), logo após a morte de seu marido.
No período final de sua vida, depois da fundação da doutrina espírita, Kardec estava diante de seu conclusivo e não menos importante desafio: estabelecer um projeto para, levando em conta as fraquezas da natureza humana de nosso tempo, perpetuar a organização do Espiritismo numa nova fase, a da direção coletiva. Além disso, necessitava defender a doutrina dos ataques dos inimigos, que se opunham, a maior parte deles preocupada com a perda de seus privilégios. Era imprescindível impedir os cismas.
O primeiro passo seria restabelecer como condição indispensável uma declaração explícita de cada integrante de que conhece e aceita os conceitos fundamentais da doutrina espírita contidos nas obras de Kardec por meio da universalidade do ensino dos espíritos, para manter a unidade de princípios. Depois, organizar um comitê central com autoridade compartilhada em grupo, de modo que os defeitos e os equívocos de uns deveriam ser superados pelos valores de outros e fazendo valer as vantagens das decisões tomadas em grupo, pela sua maioria. Esse grupo menor diretivo seria controlado por outro maior, com representantes dos mais diversos grupos espíritas, reunidos em assembleia, com autoridade para resolver questões, determinar diretrizes e conduzir novas pesquisas.
Por fim, enquanto ciência de observação, toda a atividade do movimento espírita deveria dar continuidade às comunicações amplas e variadas com os espíritos, pois essa é a condição estrutural de sua teoria científica enquanto observação dos fatos que a constituem. A manutenção do diálogo com os espíritos superiores não só preservaria a sua integridade como permitiria o seu desenvolvimento progressivo, como requer todo conhecimento científico. Era necessária a diversidade de grupos, com todos adotando a mesma doutrina, integrando médiuns capacitados e cientes da necessidade de abrir mão de sua personalidade para servir modestamente. Só assim seria possível manter uma rede disponível para a universalidade do ensino dos bons espíritos.
Enfim, pretendia Kardec que cada grupo também tivesse seu comitê, assim como os países, que também teriam suas assembleias regionais e nacionais, que comandariam os comitês centrais, atuando como observatórios, grupos de pesquisa científica, organizados à semelhança de academias científicas, para o desenvolvimento e a hegemonia da ciência espírita e sua teoria basilar. Essa era, em linhas gerais, a conclusão do legado de Allan Kardec, para a conservação e  a perpetuidade da doutrina espírita, até que fosse compreendida pela humanidade como teoria baseada em leis naturais da psicologia humana.
Ocorre, que, pouco após a desencarnação do seu marido, Amélie Boudet foi convencida a participar da criação de uma empresa puramente comercial, a Sociedade Anônima da caixa geral e central do Espiritismo, e transferir-lhe todos os direitos sobre as obras e o legado de Allan Kardec, como a Livraria Espírita, a Revista Espírita e sua lista de assinantes, o que ocorreu no mês de julho de 1869. Acreditava ela que assim seria possível a publicação das obras de seu marido a preços populares.
Todavia, apesar de aportar o equivalente a 62,5% do capital da empresa, Amélie não teria mais nenhum poder sobre esse patrimônio. A Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas foi completamente afastada da gestão do Espiritismo. Somente dois proprietários administradores ( Armand Desliens e Édouard-Mathieu Bittard) passaram a gerir essa empresa com poderes absolutos. Mais tarde renunciaram para deixar Pierre-Gaëtan Leymarie como único gestor. Agiram praticamente como donos do Espiritismo, de forma autocrática, mercantilista e abandonando o plano de Kardec, o que permitiu a edição e o lançamento das edições adulteradas das duas últimas obras da Codificação, além da divulgação de doutrinas estranhas ao Espiritismo7.

1-Adulteração significa alterar as propriedades originais de algo. Neste caso, a expressão tem sentido de contrafação, que é o desrespeito aos direitos morais do autor pela reprodução de uma obra com alteração não autorizada expressamente por ele.
2-Conforme documento n. F/18(III)/135, p. 98, de 23/12/1872, sendo o pedido de impressão realizado em 19/12/1872, conforme documento n. F/18(II)/141, p. 98. Fonte: Arquivos Nacionais da França.
3-O direito moral do autor é protegido por lei. 172 países signatários da Convenção de Berna, criada em 9 de setembro de 1886, em Berna, Suíça, sendo esse o diploma internacional de direito autoral mais antigo e adotado no mundo. No Brasil, essa convenção foi promulgada através do Decreto 75.699/75.
4-Contribuindo para o estudo da obra de Allan Kardec, mas sem a informação de que a quinta edição foi adulterada, a Editora do Centro Espírita Léon Denis (CELD), do Rio de Janeiro, lançou a obra A Gênese, em julho de 2008, feita com base na 4ª edição. Como a da 1ª à 4ª edições Kardec publicou-as com conteúdo idêntico, todas originais.
5-Conforme documento F/18(II)/128, p. 294, de 09/07/1869, Arquivos Nacionais da França.
6-Conforme documento F/18(III)/124, p. 117, de 19/07/1869, Arquivos Nacionais da França.
7-A descrição dos fatos e a apresentação dos documentos originais relativos ao golpe sofrido pelo Espiritismo e por Amélie, após a morte de Kardec, estão relatadas no capítulo 4 da 1ª parte do livro Nem Céu nem Inferno: as leis da alma segundo o Espiritismo (ed. FEAL, 2020).
Referência:
1-O Céu e o Inferno: ou a justiça divina segundo o Espiritismo/Allan Kardec ; tradução de Emanuel Dutra. – Guarulhos (SP) : Fundação Espírita André Luiz, 2021.