O que os espíritas precisam saber XIV

16 de Agosto de 2025 Não Por Sergio França Martins

O restabelecimento
EM BUSCA DOS ARQUIVOS DO ESPIRITISMO
2018. Entramos na sala do apartamento antigo de andar térreo, assemelhando-se a uma casa, impressão causada pelo jardim e pela calçada vistos pelas grandes janelas. Fotografias da família em todo corredor de acesso, desde os antepassados. O sentimento era o de ansiedade pelo encontro aguardado por quinze anos unido à alegria pela promissora oportunidade.
Lian Duarte, neto do pesquisador espírita Canuto Abreu, nos recebe com largo sorriso, oferecendo uma bem-vinda xícara de café quente. A feição era a mesma de minha memória, alterada pelos cabelos brancos.
Eu o conhecera quinze anos antes, quando, junto com o pesquisador e escritor espírita Eduardo Carvalho Monteiro e o então presidente da FEB Nestor Masotti, nos encontramos na Federação Espírita do Estado de São Paulo para tratar da revelação pública dos lendários arquivos de cartas manuscritas originais guardadas pessoalmente por Allan Kardec. Ele visava permitir o resgate dos fatos que constituíram a verdadeira história do Espiritismo, com seus sucessos e as lutas enfrentadas pelos pioneiros, além dos tropeços causados pelos que viveram o papel de Judas, entravando os caminhos. Nada relatado por tradições e lendas, mas sim por documentos reais, fatos concretos. Durante décadas, a existência desse acervo no Brasil foi uma lenda contada em rodas de conversa, mas não se sabia se era real.
Naquela oportunidade, Nestor nos chamou para entrar em contato com Lian e fazer um estudo prévio, para que o acervo em posse da família finalmente se tornasse público. Infelizmente, nada ocorreu como planejado. O exame dos documentos por nós nunca ocorreu. Esse momento foi roubado por pessoas que se passaram por representantes do Eduardo para visitar o Lian em seu escritório, sem a sua autorização. Foi um choque. Eduardo me ligou desesperado:
— Relembrando aquele dia, que conhecidos, porém estranhos àquela reunião, estavam à nossa volta no salão nobre da Feesp, espreitando a conversa. Certamente, sabendo que eu iria ao encontro de Lian na semana seguinte, me anteciparam no primeiro dia, como se estivessem me representando. Uma ousadia imperdoável! Vamos conversar pessoalmente, fico muito nervoso só de contar — concluiu, com voz trêmula.
Quando o encontrei, estava vermelho de nervoso enquanto as lágrimas escorriam por trás dos óculos.
Cheguei à sua peculiar casa. Nela os cachorros dividiam os ambientes conosco, enquanto todas, realmente todas as paredes e espaços eram forrados de livros. Nas salas, corredores, quartos e até os banheiros! Em seu escritório era preciso esgueirar-se pelas estantes abarrotadas, um pé diante do outro, até chegar ao computador na mesinha do fundo, coberta de documentos.
Logo me interpelou, indignado:
–Paulo, estão examinando os documentos sem nossa presença, que traição!
–Mas então entre em contato com o Lian e conte tudo – respondi.
–Não posso, não vou fazer, não podemos perder a oportunidade de tornar público esse maravilhoso e inédito tesouro. Imagine conhecermos a intimidade, as dificuldades enfrentadas, os fatos históricos ainda desconhecidos, as comunicações e diálogos com o Espírito da Verdade, São Luís, as cartas trocadas com os pioneiros, as doces palavras de Amélie, Léon Denis, família Delanne, e tantos outros que conhecemos pelos livros! Além daqueles que tentaram prejudicar o estabelecimento da Doutrina Espírita e agora poderão ser denunciados – relatou emocionado.
Então, Eduardo me disse que estava recebendo telefonemas diários daqueles que tomaram seu lugar no exame das cartas. Ele conhecia com profundidade os personagens e a história do Espiritismo em seu nascimento. Pesquisador engajado, simples e entusiasta tanto do Espiritismo quanto da maçonaria, nunca conheci alguém mais generoso. Sua casa era frequentada por escritores e acadêmicos, que saíam de lá com cópias de tudo o que buscavam. Ou recebiam de suas mãos livros raros, documentos raríssimos, com recomendação de que os devolvessem para que outros tivessem acesso a eles. Naquelas ligações – estive presente em várias -, ouvíamos a transcrição do teor das cartas de Kardec, e Eduardo contava os detalhes necessários para contextualizá-las. O intermediário ouvia atentamente e depois utilizava as informações para oferecê-las à admiração de Lian, conquistando a sua confiança.
Depois de algumas semanas, porém, nos sentimos recompensados diante da reunião marcada para finalmente termos acesso ao acervo, chamados pelo intermediário que impropriamente nos substituiu na tarefa. Completa decepção, porém, foi o desfecho, quando ouvimos:
— Fui nomeado curador do Instituto Canuto Abreu, aguardem o futuro quando vocês terão acesso às cartas, agora cuidaremos delas reservadamente.
— Encerrou a conversa segurando o referido contrato na mão e nos encaminhou para a porta da rua.
Eduardo ficou completamente frustrado. Não era da sua natureza querer nada para si, mas, emocionado, preocupava-se em garantir para a história os fatos aos quais dedicou a vida e a saúde. Convivemos mais alguns anos, mas tenho para mim, pela proximidade, que o epílogo daquele caso oprimia seu coração quando de sua morte. Guardei todos esses  acontecimentos sem contar absolutamente a ninguém, com o propósito de relatá-lo de primeira mão a Lian, quando o encontrasse um dia, como um resgate da memória de Eduardo. E esse momento havia afinal chegado. Antes disso, é preciso resgatar algumas coisas.
Nos dias anteriores a nosso encontro naquele apartamento, estávamos envolvidos com o resgate de A Gênese originalmente escrita por Allan Kardec. A diplomata e escritora espírita Simoni Privato havia comprovado em fontes primárias encontradas na Biblioteca e Arquivos Nacionais da França que a quinta edição, difundida nas traduções por todo o mundo, não fora publicada por Kardec, que, desde a primeira em 1868, cuidou pessoalmente das quatro primeiras edições, absolutamente idênticas. Pois em 1872, uma edição completamente modificada, com trechos suprimidos, alguns bastante longos, e outros acrescentados, sabemos agora que se trata de uma infame adulteração! Um ato promovido nas sombras por mãos amigas, mas interesseiras, escondendo as conclusões inovadoras e revolucionárias da moral espírita, pesquisadas cuidadosamente por Kardec nos anos anteriores, publicadas em sua derradeira obra como conclusão do seu trabalho.
Mais à frente neste livro ( Autonomia a história jamais contada do Espiritismo) vamos tratar desse assunto com detalhes, documentos e provas. Agora nos basta dizer que estávamos divulgando amplamente esses fatos e a obra de Simoni, O legado de Allan Kardec, nas redes sociais e nos programas da rádio Boa Nova e da TV Mundo Maior, quando, após o programa ao vivo Livre Pensamento, recebemos da equipe técnica um recado: “O presidente da Fundação Espírita André Luís (FEAL) quer falar imediatamente com você”.
Atendendo a ligação, o senhor Lombardo me disse, bastante comovido:
— Fiquei tocado com os irrecusáveis fatos denunciando a adulteração da obra A Gênese do mestre Allan Kardec. A FEAL, que é dedicada à divulgação da Doutrina Espirita, entidade ligada ao tradicional Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luís²², por mim representado, se sente no dever de resgatar a edição primeira, verdadeira e original de Kardec. Para nós será uma honra.
Você pode nos ajudar a publicá-la?
–Aceitei a tarefa sem hesitar. Na Argentina e nos demais países de língua espanhola, a edição primeira já está traduzida e editada. Na França e nos outros países francófonos, a quinta edição adulterada fora substituída pela versão original. Nos Estados Unidos, a tradução estava em andamento. No Brasil, porém, com a exceção da iniciativa de Altivo Pamphiro no Centro Espírita Léon Denis, Rio de Janeiro, que havia publicado a primeira edição muito antes da revelação da adulteração, as demais editoras ainda fazem silêncio. Por sua vez, a Federação Espírita Brasileira emitiu um comunicado dizendo que continuaria publicando a versão adulterada até “prova cabal em contrário”²³. A iniciativa da FEAL, foi um passo determinado, histórico e leal à memória de Kardec.
Na reunião preparativa da publicação, estávamos na sala da diretoria da FEAL, com suas paredes marcadas por três grandes e significativos quadros retratando Jesus, Kardec e Chico Xavier. Fiz um relato dizendo que recebêramos a oportunidade de publicar a tradução feita por Carlos de Brito Imbassahy, a primeira em português da edição original, publicada em formato digital em 1998, exatos vinte anos depois. A atuação da FEAL, na divulgação do Espiritismo é muito especial, fazendo uso de televisão, rádio, cinema, redes sociais, revistas, livros. Os dirigentes são voluntários, e, como foi proposto por Kardec, tudo é resolvido de forma colegiada, sem chefe.
A conversa caminhou para os trabalhos de pesquisas sobre o Espiritismo, as dificuldades para encontrar fontes legítimas, as informações interessantes sobre a vida de Rivail em sua infância e juventude relatadas na obra Revolução espírita. Contando andanças e buscas, em meus pensamentos relembrei Eduardo Carvalho Monteiro, os tempos que passamos juntos, as dificuldades, e brilhou em minha mente a decepção com as cartas de Kardec que tanto o magoara. Senti que seria o momento adequado de tocar naquele segredo de quinze anos e falei:
–Preciso de um sigilo absoluto de vocês, mas tenho algo a contar, pois é possível que manuscritos inéditos de Allan Kardec, uma lenda do Espiritismo, possam ajudar a desvendar a questão da adulteração de A Gênese!
E contei toda a nossa vivência com Lian.
Tudo era ouvido atentamente por Onofre Baptista, presente no Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luiz desde 1981,por diversas vezes presidente executivo da Fundação, e ele disse imediatamente:
–Por décadas trabalhei com a família de Canuto Abreu, amigo próximo, conheço todos, estive por décadas ao lado do Lian. Tenho algo a lhe revelar, fui eu quem promoveu o encontro entre ele e o Nestor Mazotti, com a intenção de ajudar a tornar público o legado de Kardec! Vamos falar com ele, talvez tenha chegado a hora – Pegou o celular, iniciando naquele instante os contatos necessários.
As notícias eram preocupantes. Lian havia sofrido uma queda, impossibilitando sua comunicação. Mas havia poucos dias uma súbita melhora revertera o quadro. Depois de algumas semanas de uma difícil aproximação, nos encontramos os três, Lian, Onofre e eu, na sala do seu arejado apartamento térreo.
Parece que os caminhos de um destino estavam se realizando.
22. O Centro Espírita Nosso Lar Casas André Luiz cuidam, desde de 1949, de portadores de deficiência intelectual, com ou sem deficiência física associada. Entidade de referência, realiza anualmente 195.000 atendimentos médicos e terapêuticos em todas as especialidades.
23. Comunicado da FEB: “A Gênese, edição definitiva, de 29 de janeiro de 2018”. Diante dos documentos que comprovam que a adulteração ocorreu na quinta edição, no ano de 1872, fica provado que Allan Kardec não a  publicou em vida. Portanto, prevalece a dúvida, e a definitiva é a primeira edição (considerando que as quatro primeiras são idênticas). Para considerar válida a quinta, caberia provar que foi Kardec. No entanto, não há prova alguma.

Referência:

1- Autonomia: a história jamais contada do espiritismo / Paulo Henrique de Figueiredo — São Paulo (SP): Fundação Espírita André Luiz, 2019.