O que os espíritas precisam saber VI

25 de Dezembro de 2024 Não Por Sergio França Martins

Continuamos a publicação dos trechos em sequência dos capítulos do livro Autonomia a história jamais contada do Espiritismo do autor Paulo Henrique de Figueiredo.
O plano de recuperação.
O plano de recuperação e defesa foi executado por Amélie e Froppo, auxiliadas pelos pioneiros com os quais Canuto Abreu dialogou pessoalmente, Gabriel Delanne, Léon Denis, Henri Sausse. “A viúva de Allan Kardec de 88 anos faleceu, quando havia deixado a totalidade de seus bens à Société. A herança ultrapassava o valor de 250 mil francos daquela época, em grande parte em imóveis”, afirmou Canuto, revelando que “estava o continuador [Leymarie] em suas sete quintas (“Estar nas sete quintas” é uma expressão de origem portuguesa, que significa “estar satisfeito e muito feliz”. Quintas é uma propriedade rural.) prelibando sossegadamente o doce fruto de sua esperança quando a justiça lhe bateu às portas. Os herdeiros da viúva, patrocinados pelo maior advogado de Paris e futuro presidente da República Francesa, tinham ingressado em juízo com uma anulatória do testamento e petição da herança. Entre os motivos dói a alma anotar o seguinte: “a falecida era uma “demente” senil visto haver confessado no instrumento testamentário ser espírita e ter praticado o Espiritismo. Com a condenação, desde logo o continuador ficou afastado da Sociedade e lutou para salvar a herança. Depositou em juízo o valor estimado no inventário”. Mas os fatos se consumaram quando os herdeiros ganharam, e deram fim, vendendo tudo o que restava de valor no legado de Amélie Boudet.
Pois foi exatamente após a morte da viúva que os pioneiros descobriram uma terrível infâmia denunciada em Le Spiritisme: a adulteração da obra A Gênese, conclusão científica, filosófica e moral da Doutrina Espírita por Allan Kardec, que elaborou os revolucionários conceitos presentes nesse livro durante anos, recebendo os ensinamentos dos Espíritos superiores de forma a estabelecê-los por meio da universalidade do ensino¹³.
No inverno entre os anos de 1883 e 1884, Henri Sausse, dedicado divulgador da Doutrina Espírita, conversava à noite, cercado de testemunhas, com um senhor de Lyon, que afirmava ser amigo pessoal de Leymarie, além de fervoroso seguidor de Os quatro Evangelhos e de Roustaing. Quando trataram das obras espíritas, aquele senhor comentou espontaneamente, a Sausse:
–Devemos crer que os livros de Allan Kardec não são tão perfeitos como se imagina, considerando que Leymarie precisou fazer correções em A Gênese! (Le Spiritisme, ano 2, n. 23, fevereiro de 1885, p.6).
Surpreendido com essa audaciosa revelação, Henry Sausse dedicou-se a estudar minuciosamente a edição original de Kardec e a versão alterada, página a página, linha a linha. Tomando cuidado para não acusar ninguém, apresentou os fatos em um artigo, “Uma infâmia” (Une infamie), em dezembro de 1884, em Le Spiritisme. O artigo refletia, além do autor, o apoio abalizado da União Espírita Francesa, com Gabriel Delanne, Berthe Froppo, o casal Rosen, Léon Denis, entre tantos outros. Essa grave denúncia foi um alerta para os espíritas, quanto à necessidade de recuperar a história, verificar os documentos, conferir as edições e traduções, pois a obra de Allan Kardec não estava protegida de ataques inimigos¹4.
Alguns capítulos, mutilados pelo adulterador, ficaram irreconhecíveis. Os trechos suprimidos foram cuidadosamente escolhidos para eliminar do livro os conceitos da revolução moral proposta pelo Espiritismo. Henri Sausse ficou especialmente surpreendido ao constatar que justamente no trecho onde Kardec trata do desaparecimento do corpo de Jesus, questão fundamental da tese de Os quatro Evangelhos de Roustaing, tenha sido suprimido o trecho conclusivo:
Portanto, sobre a maneira pela qual se deu esse desaparecimento, apenas pode haver opiniões pessoais, que somente teriam valor caso fossem sancionadas por uma lógica rigorosa e pelo ensinamento geral dos Espíritos; ora, até o presente, nenhuma das que foram formuladas recebeu a sanção desse duplo controle. (KARDEC, [1868] 2018, p. 351)
Ou seja, a questão do corpo fluídico de Jesus, a partir do qual toda a obra de Roustaing se sustenta, não tendo respaldo do duplo controle, cai para o nível das opiniões pessoais, não pertencendo ao corpo fundamental da Doutrina Espírita. É o que decorre do trecho mutilado. Caso tivesse permanecido desde de que Kardec o escreveu, teria ficado mais clara a sua posição firme e definitiva diante dessa questão. Causar essa impressão de indecisão, dubiedade, inconclusividade, todas essas características absolutamente contrárias ao estilo de Kardec, nos parece, foi exatamente a intenção de quem adulterou a obra.
Herculano Pires denunciou Roustaing como a mais completa antítese a Kardec:
A mais ridícula mistificação da doutrina, o roustainguismo, continua a dominar a Federação Espírita Brasileira, que reedita e propaga, sustenta e defende a obra Os quatro Evangelhos. Jean Baptiste Roustaing, advogado em Bordeaux, na França, publicou essa obra no tempo de Kardec. O mestre a examinou e criticou com paciência cristã. Depois dele, muitos outros espíritas lúcidos e cultos denunciaram as incongruências dessa obra, decalque e deformação da obra kardeciana. O próprio advogado explicou no prefácio da obra, com a ingenuidade típica dos fascinados, as condições precárias de saúde em que se encontrava quando a recebeu, depois de evocações temerárias. A mecânica da mistificação foi exposta ao público pela própria vítima. Roustaing é o anti-Kardec, mente confusa, misticismo beato e portanto vulgar, crendice popularesca, falta absoluta de critério científico, desprezo pelos dados históricos, mitologia arcaica, raciocínio confessadamente avariado, aceitação pacífica de teses clericais obscurantistas, posições anedóticas da explicação dos fatos evangélicos ( a falsa gravidez de Maria, Jesus-menino fingindo que sugava o seio da mãe e devolvendo-lhe magicamente o leite aos vasos sanguíneos em forma de sangue, Espíritos superiores reencarnando em mundos inferiores como criptógamos carnudos, em formas de lesmas em carne humana e assim por diante). Um montão de ridicularias que se repetem nos cansativos volumes da obra num ritornelo desesperante. E homens de cultura regular(não pode ser superior) a vangloriar-se dessas tolices a ponto de considerarem a FEB como — pasmem as criaturas de mediano bom senso — como a casa-máter do Espiritismo. Ignoram certamente a existência histórica da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e todo o trabalho exaustivo de Kardec. Várias federações estaduais atrelaram-se ao carro funerário dessa Mistificação. (PIRES, 1979, p. 99-100)
Apesar da luta empreendida pelos pioneiros, Leymarie, como vamos demonstrar a partir de documentos originais inéditos, forjou provas, adulterou mensagens, espalhou desesperadamente uma cortina de fumaça para encobrir suas faltas.
Enquanto  a Revue Spirite, tomada de assalto pelos sectários da seita roustainguista, era utilizada para combater Allan Kardec, os pioneiros, agindo de forma completamente desinteressada, faziam da  União e da revista Le Spiritisme os mais importantes instrumentos de defesa  da Doutrina.
Uma das mais lúcidas pensadoras do Espiritismo, a escritora e educadora suíça Sophie Rose-Dufaure fez um alerta num artigo para o fato de que “a Doutrina Espirita apresentada por Kardec é uma obra regeneradora do pensamento e do coração, destinada a promover a mais completa e elevada das transformações sociais”. Enquanto essa teoria foi amplamente aceita por ser uma resposta adequada para o seu tempo, campeã da liberdade de pensamento, demonstrando uma “perfeita concordância entre os ensinamentos dos Espíritos, a capacidade de percepção de Allan Kardec e as necessidades da época” (UNION SPIRITE FRANÇAISE, 1883), a obra contraditória de Roustaing permanecia absolutamente impopular e esquecida no século 19, afirma Rosen.
Então, porque o roustainguismo ressurgiu no Brasil do século 20?
Da mesma forma que pensou Canuto Abreu, a senhora Rosen considerava que a tentativa de ressuscitar a obra de Roustsing ocorreu como instrumento de um plano dos inimigos invisíveis que a ditaram, adulterando a proposta moral libertadora do Espiritismo pelo pensamento religioso pregador da submissão:
[Pensam os inimigos do espiritismo que] é uma grande necessidade encontrar um alicerce para suspender a ação desse vasto movimento que se alastra passo a passo como um incêndio; pois os católicos e os protestantes se afastam de suas igrejas respectivas e vêm engrossar ainda a imensa falange dos livres-pensadores espíritas. Que fazer?… É bem simples! Aguardar a primeira ocasião favorável para recrutar os adeptos menos dedicados numa crença híbrida, ao mesmo tempo cristã e espírita, nem muito lá nem cá, para não assustar as consciências fracas, e que, por falta de melhor, viu as dificuldades circunstanciais, os clérigos poderiam tolerar, teriam mesmo de admitir, até que, pouco a pouco, até os procedimentos com os quais estão familiarizados, a onipotência episcopal reconquistaria suas prerrogativas à sombra da doutrina progressista que ela colocaria sobre um tradicional esquecimento. Assim se operará a fusão, leia-se a absorção do Espiritismo.(UNION SPIRITE FRANÇAISE, 1883, p. 34)
Rosen denuncia como absurda, incoerente e adulteradora essa “crença híbrida”, ficando “nem muito lá nem cá, para não assustar as consciências fracas”. E foi certamente esse despropósito que foi elogiado no Brasil pelo presidente da FEB, Manuel Quintão, anos depois, para preferir Roustaing a Kardec!
A conclusão é a de que a grave denúncia de Canuto Abreu vale tanto para o movimento espírita francês pós-Kardec no final do século 19, quanto para o brasileiro, início  do 20: “Com o fundamento de aperfeiçoarem a Doutrina de Kardec, adotaram a extravagância religiosa de  Roustaing, já fulminada pelo mestre com argumentos irrefutáveis, ao vir à luz. O Jesus fluídico daquele escritor fascinou a nova seita, centralizando a concepção de um Espiritismo beato, tão inconsistente e falso como o fantasma que o encabeça”.
Por qual motivo pôde ocorrer tão grande desvio tanto na França quanto no Brasil? O que salta na primeira observação é o fato de os centros de convergência, tanto a Sociedade Parisiense quanto a Federação Brasileira terem caído na pretensão de eleger um chefe do Espiritismo, o que Allan Kardec enfaticamente desestimulou. Esse chefe serviria como instrumento para os interesses dos inimigos invisíveis. Leymarie deu a si mesmo os plenos poderes, recebimento de proventos e constituiu o mais amplo despotismo. No entanto, veja o que pretendia Kardec para sua sucessão:
A necessidade de se aproximar e de se formar um feixe será tanto maior quanto o número de adeptos seja mais considerável. Mas qual será a extensão do círculo de atividade desse centro? Está destinado a reger o mundo, e a se tornar o árbitro universal da verdade? Se houvesse essa pretensão, isto seria compreender mal o ideal do Espiritismo que, por isto mesmo, proclama os princípios do livre exame e da liberdade de consciência, repudia o pensamento de se erigir em autocracia; desde o início, ele entraria num caminho fatal. (KARDEC, [RE] 1868, p. 255)
Realmente a pretensão autocrática de Leymarie foi fatal, tendo como consequência o desvio e a extinção da Sociedade Parisiense. A União Espírita veio substituí-la exatamente com uma proposta inversa, um ser coletivo, sem interesses pessoais, centrada nas obras de Kardec.
Referência:
1- Autonomia a história jamais contada do Espiritismo/Paulo Henrique de Figueiredo – São Paulo (SP): Fundação Espirita André Luiz, 2019.

13. Segundo Allan Kardec, “foi a universalidade do ensino, sancionada, além disso, pela lógica, que fez e que completará a Doutrina Espírita”(KARDEC, [RE] 1867,p. 157). O instrumento fundamental da metodologia de verificação do ensino dos Espíritos superiores pela Ciência Espírita é a universalidade do ensino. Os Espíritos superiores são capazes, por sua evolução intelecto-moral, de fazer ciência ao observar o mundo espiritual. Desde que se decidiram por ensinar esse conhecimento do mundo espiritual aos homens, optaram por fazê-lo por meio de comunicações dadas em diversas partes do mundo aos grupos organizados para a pesquisa espírita, em comunicação com o centro de elaboração de Kardec, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas. Quando esses Espíritos, proficientes nas mais diversas áreas do conhecimento, desejam apresentar um novo conceito doutrinário, manifestam-se simultaneamente nos diversos grupos, por meio de comunicações de diversos Espíritos, que, apesar de adotarem linguagens e profundidades diferentes em suas abordagens, mantinham todos a mesma ideia de fundo. Esse  processo garante a autenticidade do fenômeno, sem cair nos prejuízos incontornáveis da comunicação dada por um só médium, ou vários deles de um só centro de pesquisa, condições estas sujeitas a mistificações. Trata-se com mais detalhes da universalidade do ensino em Figueiredo, 2016.
14- Vamos analisar, no Livro Terceiro desta obra, os documentos, argumentos e detalhes que demonstram como falsas as explicações dadas à época por Leymarie para a União Espírita Francesa. Essa reviravolta ocorreu a partir da publicação da obra El legado de Allan Kardec, em 2017, por Simoni Privato Goidanich, seguida pela proposta de reunir e tornar público o acervo de cartas manuscritas inéditas de Kardec, muitas delas trazendo profundos esclarecimentos históricos, conceituais e factuais quanto a todas essas questões.