O que os espíritas precisam saber XV
Quase tudo ficou perdido
Mas uma dúvida precisava ser sanada para compreendermos a surpresa de tudo aquilo que estava acontecendo, os fios da meada para chegar a esse acordo entre a família Abreu Duarte e a FEAL, com a instituição do Centro de Documentação e Obras Raras (CDOR), com a finalidade de levar aos espíritas todo o material inédito da história do Espiritismo. O que teria ocorrido com o acervo nos últimos quinze anos?
Flávio de Carvalho (1955-) conhecera Lian na pista de Interlagos, um fã fotografando-o no seu Porsche verde e branco, equipe Z, um protótipo importado da Alemanha, que no início dos anos 1970 era de uma geração muito superior a tudo que se via no Brasil. Trinta anos depois, Flávio estava envolvido na recuperação dos carros de Fórmula 1 da Fittipaldi e na organização do Museu do Automobilismo. Gerente de projetos, é especialista em documentação digital, organização de acervos digitais e estruturação de exposições.
Nas dependências da enorme mansão da avenida Rebouças em São Paulo, 2004, Lian Duarte fazia uso de uma das salas como escritório, onde Flávio viu pela primeira vez as cartas originais de Kardec, espalhadas na mesa, sendo mostradas aos representantes da FEB, que contavam em ter sua guarda. Numa longa negociação, o Instituto deveria permanecer em São Paulo, apesar de todo medo e receios do Lian — estaria fazendo a coisa certa? Não tinha certeza, mas também não tinha a quem recorrer para pensar em alternativas; também a idade estava avançada, e precisava cumprir a missão confiada pelo avô.
A iniciativa que já relatamos, do doutor Paulo Toledo Machado, amigo dileto de Canuto Abreu, foi determinante para a continuidade, ao doar os prédios de seu museu para Lian abrigar o acervo do seu avô. Todavia, a FEB registrou os imóveis em seu nome, fez um contrato de comodato cedendo algumas salas ao Instituto, reformou, preparando-se para receber a guarda dos documentos históricos. Toda a tarefa, todas as providências e cuidados, até mesmo o transporte dos livros eram feitos pessoalmente por Lian, determinado em seus propósitos e ações, no entanto, em seus 70 anos já não tinha a agilidade e força dos tempos automobilísticos, apesar da mente lúcida. A incerteza tomava seus pensamentos: estaria cumprindo os desejos de Canuto fielmente? Os livros, os milhares de documentos, as cartas inéditas seriam tornados públicos como deveriam? Tomou a iniciativa de começar a digitalização, mas não tinha experiência nem mãos suficientes para tão grande tarefa.
Uma forte chuva que caiu em 20 de outubro de 2016 alterou completamente o rumo dos acontecimentos.
Eliana Almeida (1962-), historiadora, iconógrafa e especialista na organização de acervos, que havia atuado inicialmente na catalogação do acervo no Museu, mas havia sido afastada, recebeu um telefonema no começo de novembro. Lian, que estava atordoado, sem reação, apenas relatou que o galpão reformado do Museu Espírita da rua Guaricanga havia despencado. Um frágil e fino telhado ondulado de fibrocimento rompeu com a força da chuva. Depois do terrível ocorrido, a fragilidade da cobertura contrastava com o moderno forro, luminárias, ar condicionado do ambiente que parecia impecável e seguro. Apenas parecia. Vinte por cento dos livros raros, alguns documentos, objetos pessoais do acervo de Canuto Abreu foram molhados por uma enxurrada que descia as escadas. A umidade ativou os micro-organismos das obras, algumas com mais de quatro séculos, e o mofo e bolor se espalharam assustadoramente. Sem saber o que fazer, ninguém ajudou. Nenhuma providência foi tomada pela entidade espírita. Não havia conhecimento técnico para impedir o mais completo desastre.
Quando chegou, Eliana não perdeu tempo. Contatou o diretor do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), doutor Pablo Vasquez, que prontamente irradiou com raios gama de cobalto 60 as caixas com o precioso conteúdo, salvando-os da perda total. Depois da providência urgente, Eliana lembrou-se de perguntar: – Qual o custo de tudo isso?
Pablo respondeu: – Nada! Fiquei muito impressionado com o ocorrido, a grandeza da Causa, a eminente perda de tão vasta cultura e a emoção de sua presteza. Será nossa contribuição para esse resgate. QR CODE https://espirito.org.br/autonomia/ipen/
Irradiador do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN/USP)
Só então Eliana tomou consciência dos riscos. E se as cartas inéditas estivessem no salão naquele dia? E se algumas semanas se passassem sem essa providência técnica? Porque Lian ficou sozinho diante desse desastre? Sem poder segurar caiu em lágrimas.
Um ano depois, no decorrer de 2017, de novo sozinho, Lian estava outra vez mergulhado em dúvidas, hesitante, temendo pelo futuro do acervo. Recebeu no galpão um historiador representante da FEB que examinou as cartas para confirmar a sua existência real. Reiterados comunicados determinavam a urgência de que eles fossem entregues, para serem levados à sede de Brasília. Mas esse passo, pensou Lian, alteraria completamente os destinos do acervo, modificando o caminho inicial, desmembrando-os da biblioteca. Não era o que desejava o seu avô, nem sua mãe, que lhe transmitiu sua missão.
Num documento registrado em cartório, intitulado “Transferência de responsabilidade”, a mãe de Lian assim incumbiu o filho:
EU, LUCE DE ABREU DUARTE, HERDEIRA UNIVERSAL DE DR. SILVINO CANUTO ABREU, MEU PAI E GUARDIÃ DE SUA BIBLIOTECA FORMADA E AUMENTADA CONSTANTEMENTE UNICAMENTE ÀS SUAS EXPENSAS, UM DOS MAIORES PATRIMÔNIOS DE ESTUDO SOBRE RELIGIÃO; TRANSFIRO PARA MEU FILHO LUIZ LIAN DE ABREU DUARTE, COFORME DESEJO DE MEU PAI, A GUARDA DESTE PATRIMÔNIO, COM TODOS OS LIVROS E MÓVEIS QUE CONSTITUEM A BIBLIOTECA E ESCRITÓRIO DE MEU PAI, COM A RESPONSABILIDADE DE MANTER UMA SALA OU LOCAL SEM NUNCA DIVIDIR OU DESMEMBRAR E COM A PROMESSA AD INFINITUM, DE TRANSFERIR, QUANDO NECESSÁRIO FOR, ESTA GUARDA A UM CONSANGUÍNEO DIRETO DE MEU PAI OU FORMAR UMA FUNDAÇÃO DR. SILVINO CANUTO ABREU.
Mesmo que não o soubesse, havia sérios motivos para seu temor. Quem sabe sua intuição o estava alertando. Pois, dias depois, a notícia do exame do historiador chegou à diretoria da FEB, reunida para tratar da possível guarda do legado de Allan Kardec. O conteúdo impactante das missivas foi exposto aos presentes. Segundo revelou o então presidente César Perri, cercado pelos seus diretores em seus bancos de couro, piso de mármore, o comentário marcante de um deles ecoou no imponente nobre salão: “Os espíritas não estão preparados para conhecer o conteúdo desses documentos, eles jamais vão ser publicados!”.
Mas a situação ficaria ainda mais complicada. Flávio, que regularmente contatava o amigo, não conseguiu falar com ele, apesar de mandar mensagens sem resposta e ligações em vão. Escreveu a Gabriel, filho de Lian, que respondeu: “Ele não está nada bem. Caiu no começo de novembro e está com um hematoma subdural. Tem dificuldades de se comunicar. Estamos profundamente preocupados”.
O destino do legado de Canuto Abreu estava em jogo, e o futuro das cartas de Kardec absolutamente em risco.
Felizmente, essa história teve um final feliz e promissor.
Num evento emocionante, no dia 26 de maio de 2018, a FEAL, na presença de centenas de espíritas no salão principal do Centro Espírita Nosso Lar, lançou a edição restaurada de A Gênese, primeira edição original como escrita pelo autor, Allan Kardec. No mesmo dia, foi apresentado publicamente o projeto do CDOR, o da divulgação pública do acervo de Canuto, do legado de Kardec, da criação de um Memorial do Espiritismo, para abrigar toda a biblioteca rara, os documentos e demais dependências para pesquisa e divulgação da Doutrina Espírita. Estavam presentes também os profissionais Flávio e Eliana, contratados para criar e gerir os laboratórios de higienização, recuperação e digitalização, contando com dezenas de voluntários especializados, finalmente cumprindo a missão dos pioneiros, dos pesquisadores e da família de Canuto Abreu.